Nos meados do século 19, o movimento operário introduziu o conceito de 'solidariedade' nas discussões da questão social. Com o tempo, o termo 'solidariedade' substituiu o conceito de 'fraternidade' com sua carga semântica do cristianismo e da Revolução Francesa (1789). 'Fraternidade', assim parecia aos socialistas da época, teria uma conotação interclassista, incapaz de enfocar as contradições de classe e gênero, ou de articular o movimento operário internacional com suas lutas reivindicatórias. Todas as pessoas não podem se tornar 'irmãos', assim diziam, enquanto existem classes sociais antagônicas. Numa carta de 1846, Marx fala com ironia dos 'gemidos da fraternidade' [...]. Mais tarde, em 1848, qualifica 'a conversa de fraternidade” entre classes sociais opostas, como o disfarce da “guerra civil' em andamento. [...]
Hoje, solidariedade tem a conotação da construção ou reconstrução de uma certa simetria social, ausente desde o nascimento das pessoas ou perdida no decorrer da vida. Pessoas que nascem em países pobres ou, mesmo nascidas em regiões ricas, no entanto, de pais pobres, são, desde seu nascimento desfavorecidas, se comparadas a outros que nascem em países ou de pais ricos. Mas, a solidariedade se refere não só aos desequilíbrios materiais. Ela é holística. Não pode ser dividia numa solidariedade material e espiritual. A solidariedade abrange todo o amplo leque de fatores que configuram a qualidade de vida.
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Na vida cotidiana, a solidariedade, como dever e virtude, se realiza principalmente no interior e com a colaboração de um Estado, cuja razão de ser é a responsabilidade social para com todos. Esta responsabilidade e as discussões em torno de prioridades envolvem interesses e visões do mundo. Exigem, no meio de conflitos contextualizados e estruturais, consensos que superam o corporativismo de setores economicamente mais fortes. No meio destes contextos surgem questionamentos sobre os limites da solidariedade sistêmica e sobre as possibilidades reais da gratuidade na contra-mão cultural do mundo formatado pela lógica neoliberal de custo-benefício. Setores da Igreja que acompanham os movimentos sociais e suas lutas por justiça, são obrigados diariamente fazerem seu discernimento sobre sua presença junto aos pobres e seu envolvimento com a lógico do mundo.
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Até a segunda metade do século 20, acreditava-se que o processo de transformação de hospitais de caridade em hospitais públicos e de escolas privadas em escolas do Estado seria irreversível. Esperava-se que todos os serviços essenciais de uma comunidade seriam assumidos pela comunidade política. Considerou-se esta responsabilidade um sinal da própria modernidade e uma conquista de um Estado leigo. Separado das Igrejas, pensava-se, o Estado assumiria os serviços antes prestados pelas comunidades religiosas, e conduziria a sua administração numa ética leiga e pública.
A solidariedade proclamada pela classe operária, por exemplo, era uma solidariedade além da solidariedade privada como virtude individual. A causa de crianças e velhos, enfermos e desiguais por herança ou circunstâncias particulares da vida não poderia ser entregue à sorte de círculos de caridade, a credos, às vezes, até discriminatórios, ou laços de parentesco, mas deveria ser assumida pela comunidade política como um todo. No decorrer dos anos, este socorro público tornou-se direito, previamente pago através dos impostos de cada operário. A responsabilidade solidária da comunidade dos cidadãos, portanto, pode ou podia ser cobrada nos tribunais independentes. Esta solidariedade estrutural, em tese, faz todos responsáveis por um input monetário numa caixa comum, segundo seus salários ou bens, e vincula o output, não à soma que cada um pagou (o pobre, certamente, pagou menos), mas a sua necessidade que diferencia os 'receptores'. Um idoso que está com boa saúde, certamente, recebe menos desta “caixa comum” que um outro que ficou, desde a sua juventude, paralítico. É o princípio do Estado social e solidário.
Burocratização, centralização, funcionalismo descontrolado e corrupção acompanharam os serviços de solidariedade do Estado laical, com seu quadro de funcionários, às vezes, desprovido de uma ética de serviço. O Estado leigo vive de pressupostos éticos que ele mesmo é incapaz de produzir. O Estado 'pesado', 'corrupto' e 'ineficiente' produziu um certo mal-estar com as instituições e os serviços deste Estado. Os “negócios” da iniciativa privada pareciam funcionar com mais eficácia.
As estruturas de solidariedade do então chamado Estado social, com toda a precariedade de seu funcionamento, ainda uma esperança para muitos, hoje, estão sendo desmontadas, ou por privatizações que obrigam cada um a cuidar do seu futuro e de sua 'sorte', ou por reduções drásticas do próprio Estado ao 'estado mínimo'. O pano de fundo das privatizações dentro do sistema mais amplo do neoliberalismo é o credo na força auto-regulativa do mercado e o lucro prometido ao 'vencedor'.
A passagem da responsabilidade pública para a iniciativa privada representa a passagem da solidariedade comunitária para o mercado privado e concorrencial. Se o mercado que estimula a iniciativa das pessoas, que é algo positivo, em seu conjunto, é uma instituição dos vencedores e dos mais fortes, como dará prioridade para aquele que perdeu a possibilidade de competir, ou por sorte, ou por incompetência ou por experteza dos outros? A privatização de serviços essenciais do Estado representa uma desolidarização pública.
Atrás desta evolução está não só a insensibilidade dos governantes e o lucro não socializado dos beneficiados, mas também uma mudança radical no padrão organizacional do trabalho. A mecanização, na indústria e no campo, criaram um desemprego estrutural em massa. Cresce, no Brasil, a área destinada ao agronegócio, bem mecanizada, que produz a expulsão e a desigualdade pela intensa produtividade com poucas pessoas. 'Ao contrário da revolução industrial que incorporou maciçamente mão-de-obra, a revolução tecnológica vem eliminando postos de trabalho. [...] Nos anos 60, a média era de 4 trabalhadores para cada autoveículo produzido. Em 2000, essa média caiu para 1,8 trabalhador por autoveículo'. [...] Necessita-se cada vez menos trabalhadores para produzir mais. A revolução tecnológica criou uma situação estrutural de desemprego com uma dinâmica irreversível de diminuição do trabalho remunerado. Com esta situação, cada vez menos dinheiro entra na 'caixa de solidariedade' do Estado. Por outro lado, o dinheiro está se concentrando nas mãos de cada vez menos pessoas que fogem de sua responsabilidade social.
Várias propostas de solidariedade estão sendo discutidas. Vão desde a 'partilha' do trabalho entre os que têm três empregos e os que não têm nenhum, de novas formas de tributação de lucros (Taxa Tobin), da Reforma Agrária e de uma socioeconomia solidária. [...] Atrás de cada uma destas propostas estão movimentos sociais e comunidades científicas que trabalham com um horizonte de reformas e/ou rupturas.
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A 'causa' dos pobres, dos outros e dos excluídos coloca a questão da solidariedade no centro de uma cadeia de grandes conflitos e lutas pela redistribuição dos bens acumulados e pelo reconhecimento dos outros e das outras em sua alteridade. Os beneficiados pelas desigualdades - os latifúndios da terra, do capital, dos meios de comunicação - estão mundialmente articulados em parcerias que visam a maximização dos lucros. No mundo globalizado, todos os conflitos pela redistribuição dos bens têm uma dimensão que ultrapassa a região e o país.
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Na atuação concreta da solidariedade, na opção pelos pobres/outros e na definição de prioridades daí decorrentes, se mesclam, muitas vezes, três tipos diferentes de solidariedade: a solidariedade samaritana, a solidariedade institucional e a solidariedade profética.
A solidariedade samaritana que pode ser individual ou coletiva, atua mais na base do sinal e da solução imediata. Nem por isso é paternalista. Os sinais, geralmente, são mais abrangentes do que os casuísmos caritativos. Os sinais-milagres de Jesus operavam neste nível. Além de curar uma pessoa concreta tiveram e ainda, hoje, têm um significado que vai muito além do caso específico.
A solidariedade institucional é organizada ou pelo próprio Estado ou por movimentos, ONGs, instituições humanitárias, cujo objetivo gira em torno de uma causa universal de direitos humanos de todos ou, de um grupo específico (mulheres, negros, indígenas, crianças) ou de uma necessidade emergencial (enchentes, seca, tempestades). Esta solidariedade operacional e institucionalmente estruturada vai sempre além de um ou outro caso individual.
A solidariedade profética denuncia as causas e os causadores das assimetrias sociais; ao mesmo tempo, forja um horizonte de sentido e de um outro mundo possível. A desolidarização do neoliberalismo globalizado exige uma solidariedade profética universal que se rebela não só contra a condição humana, mas contra a condição histórica da humanidade. Os cristãos não devem ser remendos novos em odres velhos, mas areia na máquina da opressão histórica.
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A solidariedade é como um rito de iniciação. [...] A partir da menoridade e desigualdade sistêmicas abre portas para a vida adulta com perspectivas de igualdade. Fazem parte desse rito de iniciação momentos de reclusão, purificação e passagem para uma nova realidade. No contexto da solidariedade interessa sobretudo a saída da reclusão e a “passagem” para um mundo adulto, onde a solidariedade xtraordinária se torna responsabilidade diária. Esta passagem pode ser interpretada como ruptura, em função de um sonho e de uma utopia. A solidariedade favorece a ruptura com a situação de manutenção da desigualdade que não é uma situação privada, mas pública; portanto, política. Ao sustentar a utopia dos pobres e dos outros, a solidariedade é subversiva e perigosa.
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Se definirmos a situação que priva os pobres de pão, teto e futuro como 'situação irracional', então a razão está com os pobres. No mundo novo, pelo qual lutam, coincidem razão e felicidade. Este mundo novo que questiona privilégios e privilegiados do seu respectivo tempo, e propõe rupturas, é perseguido antes de nascer. Thomas Morus (1478-1535) [...], Francis Bacon (1561-1626), Tommaso Campanella (1568-1639) que eram teóricos de um mundo novo, foram condenados e perseguidos por causa dos seus escritos, mesmo antes de iniciar qualquer ação política. Mas, parece haver uma correnteza subterrânea do pensamento utópico que atravessa com nomes diferentes, perigosamente, os séculos.
Por ser um instrumento da esperança sem limites, a solidariedade tem um parentesco profundo com a utopia. A solidariedade rompe com a lógica da acumulação e com os cálculos de custo-benefício; rompe com o 'eficientismo' da cultura moderna; rompe com a 'cultura dos resultados e do sucesso' em benefício do testemunho e da silenciosa proclamação do Reino de Deus. [...] A solidariedade rompe com a racionalidade de troca e instaura a inteligência do amor; recusa-se a parcerias rentáveis e articula alianças com pobres e excluídos; rompe com a lógica da convenção do 'culturalmente correto' opta contra a concorrência, em favor da gratuidade; não apóia medidas que reforçam a dependência e busca saída para iniciativas próprias. A solidariedade denuncia a situação de acumulação. Ela é praticada não a partir do supérfluo, mas a partir da penúria. Ela aponta para a partilha. Na lógica da partilha, o pão é para todos. O pão partilhado não acaba. O encontro no caminho se dá na partilha da palavra e do pão, do espaço e do tempo, dos dons que se têm e dos bens que a vida proporcionou. A missão da solidariedade rompe com a reclusão pré-pentecostal que pode ser geográfica e psicológica. Ela rompe com a regressão infantil, muitas vezes enfeitada como fidelidade à tradição ou obediência, rompe com o medo da liberdade e da alteridade, rompe com o desejo mimético que corre atrás de modas e mercados.
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A solidariedade é autoimplicativa. Ser pessoa humana é só possível em comunidade com outras pessoas, cuja vulnerabilidade forja responsabilidade. Emmanuel Lévinas constrói uma estreita vinculação entre sensibilidade, responsabilidade e solidariedade: 'Sofrer pelo outro é ser responsável por ele, suportá-lo, estar em seu lugar, consumir-se por ele. (...) Desde a sensibilidade, o sujeito é para o outro: substituição, responsabilidade, expiação.' [...]
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A solidariedade é militante e festiva, porque marca presença na vida dos pobres. Está marcada pela alegria de poder participar da construção do mundo novo. A colaboração na organização da esperança dos pobres, arrancando do latifúndio e do capital pedaço por pedaço dos seus territórios indevidamente apropriados, dá sentido à vida dos cristãos e razão à sua esperança.
Participar da luta significa também participar da luta em função da festa que é a socialização da 'divina abundância'. Na alegria da vida cotidiana dos pobres está a força de sua resistência. Nas canções, na poesia e na arte, nas celebrações, nas conversas em torno da fogueira e nas orações, os 'vencidos' se levantam, reconstroem seu passado e seus sonhos; os que morreram sem voz, os mártires conhecidos e desconhecidos, recebem voz própria; tornam-se comunidade dos santos, ancestrais que orientam o futuro e fazem lembrar o passado. Os pobres/outros resistem em suas festas contra a “inserção no mercado” e integram em suas lutas uma solidariedade memorial. As lutas e as festas dos movimentos sociais são instâncias críticas frente à sociedade de consumo privilegiado, de acumulação e de falhas graves de memória [...].”
REFERÊNCIA
PAULO, Suess. Missão e solidariedade. Disponível em: http://www.ccfmc.net. Acesso em 05/10/2007.